a flor amarela e o pôr do sol que moram em uma mente cansada
hoje é terça e terças têm cheiro de suor - café e também de trabalho.
não acho que trabalho tenha cheiro específico, a não ser que tenha um trabalho do tipo que cheira a perfume
ou cheira também à afeto e o afeto parece ser discordância quando penso em trabalho
porque trabalho desde sempre
é cansaço
me sinto cansada como quem corre maratonas ou
quem corre atrás do sonho e também da vida
existe uma coisa que nasce na gente quando o trabalho tem cheiro ruim
existe também nascimento
nascimento de reflexão e as reflexões
que nascem de dentro do peito miúdo são como flores
uma flor amarela
sempre quis ter esse dom bonito que é ver a vida com olhos bons o tempo todo mas nunca consegui
me sinto menos humana por isso
mesmo que a humanidade exista exatamente nisso
pessimismo!
acho sempre que sou pessimista
que reclamo demais e que vivo errado
e então saio na rua
encontrando nas calçadas
flor amarela.
acho que a felicidade gigante mora na miudeza de uma flor amarela
tenho visto muitas quando saio e o amarelo
assim como o sol - que desenhamos amarelo quando crianças
trazem uma sensação de acolhimento
alegria!
é verão no agosto porque o tempo está confuso
e ora, tempo
quem não está?
tenho ficado muito em casa e acho que não existe coincidência nisso
a natureza do cansaço
mora no casulo e eu amo tanto o meu
não me desprendo dele
da minha caverna
de teto e janela
minha c a s a
da minha janela
vejo o pôr do sol
estão mais bonitos
e diferentes
e então minha mente se inquieta pois o sol é o mesmo sol
mas seu adormecer diferente
todo dia que existe e que vai existir o pôr do sol nunca será igual
ser único
sendo
o
mesmo
todo
dia
me canso quando vejo
os mesmos par de olhos e
nariz e boca
e todo resto
no espelho, também não gosto mais de tirar fotografias
mas e esses dias
tirei uma porque lavei o cabelo e me achei bonita
apoiei minha cabeça na mão e olhei para baixo encarando o nada
eu amei a foto mas minha família não
eles perguntaram
por que você está triste?
por que seus olhos
estão
c
a
i
n
d
o
igual cachoeira?
não respondi porque não me sinto triste
acho que naquele momento estava sendo exatamente
o que eu podia ser
pôr do sol
atribuo sem culpa meu olhar cabisbaixa às noites mal dormidas
mas nunca conto a causa exata
por elas não serem bem dormidas
é meu segredo
igual Clarice
nos diz
isso aí é segredo
meu cansaço é segredo
o guardo tão bem que nem sequer o entendo
segredos são um tipo de vida
dentro de nossas próprias vidas
é o não pertencimento e eu nunca me sinto pertencente
nem da minha casa e de meu corpo
pertenço ao sol
e também
às flores amarelas
e eu devo ser uma dessas pessoas que sente em demasia
ser assim dói mas acho que vale a pena
ser e vomitar tudo que é indigesto
ou tornar-se indigesto o mundo porque o sinto
e eu sangro enquanto sinto porque acredito que sangrar será cura
mas se torna hemorragia e as hemorragias nos matam
aos poucos
tempo suficiente para que
nos vejamos
indo
em direção ao fim
pois os fins
são feitos também de recomeços
e os recomeços
são o navegar
na fragilidade de uma flor amarela
e no mistério do pôr do sol
pois não se sabe o que se encontrará
em nossos anoiteceres particulares.
maria c henriques
"Este texto é uma obra fictícia e autoral, protegido por direitos autorais contra qualquer forma de plágio."
Publicado em 17/08/2024